Era tarde de verão, e os meninos desceram em grupos para a praia. Aquela
havia sido uma semana difícil, como todas as outras, entre os buzus lotados, os
altos preços das passagens para o trampo. Trabalhava-se na Zona Sul de
porteiro, engraxate, segurança particular - e uniformizados não eram ofensa
alguma.
Durante a noite, irmãos de cor que nem sempre o reconheciam os faziam
chamar de Doutor Fulano, aqueles haviam sido branquiados e a distorção do que é
poder havia lhes subido a cabeça - como diziam lá no morro. Mas eles, meninos
uniformizados estavam esbanjando algum contentamento, era o primeiro emprego
para um deles, primeiro salário fixo, férias remuneradas, FGTS, e toda
essa lógica de cidadania vendida para a classe trabalhadora.
E os meninos do morro, foram comemorar a formalidade de serem
proletariados. Mas os contemporâneos capitães do mato, que também vieram do
morro, mas se esqueceram disso quando conseguiram quitar o apartamento de
quatro cômodos, quando lhes deram uma arma e um treinamento ordenado a seguir:
atire primeiro, pergunte depois. Defenda o Estado, e pretos não fardados são
todos suspeitos. E assim, houve a perseguição caracterizada de autos de
resistência. Mais uma vez o sangue foi estancado no jornal, e as mães que
gritam silenciadas num canto de uma casinha na periferia do pais.
Favela é favela, moleque! Ficaram lá suas linguagens - objeto de estudo
de muitos. Seus sonhos escorrem e são enterrados. E a polícia diz: Que sirva de
exemplo para outros tantos jovens negros, menino preto de carro é suspeito.
Direito processual e apelação é coisa de branco rico, e direitos humanos é para
'humanos direitos'.
E mais uma vez, as mães choram. E mais uma vez a mídia silencia. E se
fosse um playboy branco da Zona Sul? E se fosse eu? Não, não seria, isso nunca
se viu.
E qual a carne mais barata do mercado? E qual a face mais estereotipada
nesse cenário? E você e eu meu irmão, estamos agindo direito?
Até quando um, dois, três, quatro, cinco jovens - anjos negros sairão
desse cenário a queima roupa, sem direito de contar a história de um povo
heroico, de reis e rainhas atemporais.
A carne pulsa cada desejo da alma vã.
Érica Conceição
Cientista Social, especialista em
antropologia urbana, poetisa.