Negros são os mais condenados por tráfico e com menos drogas apreendidas


Levantamento inédito analisou 4 mil sentenças de 2017; maioria das apreensões é inferior a 100g e 84% dos processos tiveram testemunho exclusivo da polícia.

Em dezembro de 2017, Eliane foi condenada por tráfico de drogas. Mulher negra, seu crime, enquadrado no artigo 33 da Lei de Drogas, foi carregar no cós da calça 1,4 grama de maconha. Eliane visitava o filho, que cumpria pena na Fundação Casa, em São Paulo, quando foi flagrada na revista íntima.
Sem antecedentes criminais, Eliane confessou que a droga foi um pedido do menor, ameaçado dentro da unidade. “Eu fiquei com medo, acabei levando. Estou arrependida”, justificou ao juiz.
Em sua defesa, a Defensoria Pública afirmou que a quantidade de maconha era insignificante para uma condenação em regime fechado. A droga encontrada com Eliane equivale a um sachê de sal.
Mas o que poderia ser um atenuante de pena com a confissão espontânea parece ter se tornado um agravante diante das afirmações do magistrado. Para ele, o regime fechado era a única decisão “compatível com a gravidade da conduta”, além de ser necessário para que a acusada pudesse “refletir sobre o erro e mudar os seus valores”.
Além disso, um importante detalhe não passou despercebido no julgamento. A ré estava grávida de nove meses. E por ser gestante “deveria ter pensado melhor” antes de praticar o crime, disse o juiz na sentença que a condenou a um ano, onze meses e dez dias. A ré, no entanto, pôde responder em liberdade.
A história de Eliane ilustra alguns dos casos levantados pela Pública na análise de mais de 4 mil sentenças de primeiro grau para o crime de tráfico de drogas julgados na cidade de São Paulo em 2017.
Ao longo de quatro meses, as sentenças foram classificadas por raça e cor nas categorias: absolvição, condenação, condenação em parte e desclassificação – quando o réu é acusado de tráfico, mas é condenado apenas por “posse de drogas para consumo pessoal”. Além disso, foram tabuladas as quantidades de drogas apreendidas nesses processos, que envolvem diretamente 4.754 réus.

Negros, mais condenados e em maior proporção

Os dados revelam que os magistrados condenaram proporcionalmente mais negros do que brancos na cidade de São Paulo. Setenta e um por cento dos negros julgados foram condenados por todas as acusações feitas pelo Ministério Público no processo – um total de 2.043 réus. Entre os brancos, a frequência é menor: 67%, ou 1.097 condenados.
Enquanto a frequência de absolvição é similar – 11% para negros, 10,8% para brancos –, a diferença é de quase 50% a favor dos brancos nas desclassificações para “posse de drogas para consumo pessoal”: 7,7% entre os brancos e 5,3% entre os negros.
 (Bruno Fonseca/Agência Pública)
“Mesmo o fato do acusado ser negro ou branco não constar explicitamente como um dado para fundamentar uma decisão judicial, o que a gente percebe olhando os dados é que há uma criminalização maior dos negros”, avalia Isadora Brandão, do Núcleo de Diversidade e Igualdade Racial da Defensoria Pública de São Paulo, que analisou os dados do levantamento exclusivo.

Negros são processados com menores quantidades

De maneira geral, os negros também foram processados por tráfico com menos quantidade de maconha, cocaína e crack do que os brancos.
Entre os réus brancos foram apreendidas, na mediana, 85 gramas de maconha, 27 gramas de cocaína e 10,1 gramas de crack. Quando o réu é negro, a medida é inferior nas três substâncias: 65 gramas de maconha, 22 gramas de cocaína e 9,5 gramas de crack.
As proporções e diversidade de drogas em posse do acusado variam entre as ocorrências. Quando foi apreendido com o suspeito somente um tipo de entorpecente, a diferença nas quantidades se acentua entre as cores para maconha e cocaína e se inverte na apreensão de crack.
 (Bruno Fonseca/Agência Pública)
Nos casos de apreensão de somente um tipo de droga, os negros foram proporcionalmente mais condenados portando quantidades inferiores de entorpecentes. No caso da maconha, 71% dos negros foram condenados, com apreensão mediana de 145 gramas. Já entre os brancos, 64% foram condenados com apreensão mediana de 1,14 quilo, ou seja, uma medida quase oito vezes maior.
Ainda entre as apreensões somente de maconha, a diferença ocorre também nos casos em que a acusação é desclassificada pela Justiça para “porte de drogas para consumo pessoal”: 9,3% dos negros foram considerados usuários, e a mediana das apreensões nesses casos foi de 39,4 gramas. Já entre os brancos, 15,2% foram considerados usuários, com apreensão mediana de 42,8 gramas de maconha.
Nas ocorrências envolvendo somente crack, a mediana das apreensões nos processos que levaram à condenação é semelhante entre as cores: 11,1 gramas para os brancos e 10,2 gramas para os negros. No entanto, as frequências de condenação são bem diferentes: 67% entre os negros e 50% entre os brancos.
Nos casos de apreensão de cocaína, a frequência de condenação foi de 66% entre os brancos, e a mediana, 34,2 gramas. No caso dos negros, 68% foram condenados, e a mediana das apreensões nesses processos foi de 26 gramas.
 (Bruno Fonseca/Agência Pública)
Ao todo, nesses processos foram identificados 1.547 réus com apenas uma droga apreendida – 679 para maconha, 186 para crack e 650 para cocaína.
É o caso de Mali, homem negro, condenado a cinco anos por portar 1,6 grama de cocaína. Sem antecedentes, ele foi sentenciado em primeiro grau com base no testemunho de dois policiais civis que alegam que o viram “de longe em atitude suspeita”.
O réu alegou em juízo ser usuário, enquanto os policiais afirmaram que Mali foi abordado por outras pessoas, mas os agentes não identificaram os supostos compradores da cocaína.
“Dadas tais circunstâncias, que cercaram a prisão do acusado, revela-se não se cuidar, aqui, do pequeno traficante que a Lei 11.343/2006 quis, certamente, privilegiar”, sentenciou a juíza.

O que define um traficante?

A lei em questão citada pela julgadora de Mali é a Lei de Drogas, de 2006, que aguarda debate final no STF sobre definição da constitucionalidade de um de seus artigos, o que trata da descriminalização do porte para uso pessoal.
Sem haver parâmetros objetivos para diferenciar traficante de usuário, na hora do julgamento costuma prevalecer o entendimento da tríade formada por polícia, Ministério Público e magistrados.
Cristiano Avila Maronna, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), explica que a lei prevê dois crimes: a posse e o tráfico. A diferença, segundo ele, é que quem tem a posse da droga com o objetivo de vender a terceiros, comercializar, ter lucro é o traficante. Quem tem a droga para uso pessoal é usuário. “Só que na prática essa diferenciação é muito tênue”, avalia Maronna.
O motivo? “A lei permite que as pessoas sejam condenadas por tráfico de drogas apenas com base em presunção. Não se exige prova de que a pessoa vendia”, afirma.
retomada do julgamento no STF está prevista para daqui um mês, em 5 de junho. Já se sabem as justificativas do relator do processo, o ministro Gilmar Mendes, e de seus colegas Edson Fachin e Luís Roberto Barroso, sobre a inconstitucionalidade do artigo 28, que considera crime punível com penas alternativas: “comprar, portar ou transportar drogas para consumo pessoal”.
Mendes, por exemplo, votou para liberar o porte de todas as drogas para uso pessoal. Fachin e Barroso restringiram liberar o porte para maconha. No caso de Barroso, ele sugere que se considere porte para uso pessoal até 25 gramas de maconha ou seis plantas fêmeas.

Por Texto: Thiago Domenici e Iuri Barcelos | Infográfico: Bruno Fonseca, da Agência Pública  |  Foto de capa: Prisões brasileiras (Getty/Getty Images)

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